SOLIDARIEDADE: UTOPIA OU REALIDADE

Somos um tecido existencial feito de desejos grandes e concretizações pequenas, sonhos longos e vigílias breves, de aspirações infinitas e realizações limitadas. Ora perdemo-nos nos discursos dos desejos grandes, dos sonhos longos, das aspirações infinitas. Ora nos emaranhamos na pequenez de nossos feitos, concretizações e realizações.

A utopia acorda em nós o futuro inexistente, mas desejado. Ela nô-lo apresenta na face de algo possível, realizável ainda no espaço da história. A sua força nasce do jogo inteligente entre a beleza da proposta e a viabilidade histórica. Por isso, desencadeia energias em nós em direção a sua realização(...)

A realidade já está aí presente com as cores cambiantes das ações humanas. A utopia choca-se com ela para fazê-la melhor. E esta chama a utopia para o concreto a fim de ir realizando-a. Assim a solidariedade é, ao mesmo tempo, um grito maior utópico que atravessa os oceanos, que vai para além do nosso presente e um conjunto de pequenas ações que nos tecem o cotidiano de fraternidade.

A fé está continuamente a despertar-nos para a utopia da solidariedade. Há momentos privilegiados para isso. Os tempos litúrgicos natalinos, para os quais nos preparamos pelo Advento, e o início de ano falam bem alto desse sentimento tão humano e cristão. No Natal, tudo são cantos de paz – shalom - que traduz muito bem o que chamamos de solidariedade. No início do ano, tudo aspira a ela. Utopia se faz realidade em andamento.

Conta-se que D. Helder, antes de entregar-se às inúmeras vigílias de oração, gostava de compulsar os jornais e colher neles os fatos e sofrimentos da humanidade para, solidário, apresentá-los a Deus. Às vezes, nós, cristãos, esquecemos a força da solidariedade da oração e do jejum. Ela não nos vem da publicidade, mas da certeza de que "a prova de ter fé está em esperar de Deus o impossível. O impossível do homem é o possível de Deus" (Peter-Hans Kolvenbach).

Estamos mais uma vez vivendo o Advento com sabor de silêncio, de recolhimento, de espera na oração. Em vez de fechar-nos no pequeno mundo dos problemas pessoais e familiares, ele nos prepara para o Natal e para esse começo de ano e nos lança para além das preocupações diárias a fim de alcançarmos tantos irmãos nossos, necessitados de apoio.

Além da solidariedade diante de Deus no espírito de oração, cabe-nos viver outras formas. Freqüentemente se seguem às situações de penúria e catástrofe movimentos de socorro, quer através da oferta de dinheiro ou de outros bens, quer, em alguns casos, de voluntariado de ajuda. Os jornais escritos e televisivos nos põem a par de cataclismos da natureza, desastres causados pelas guerras e atentados, passagens de furacões e tornados. Às vezes, a tragédia acontece perto de nós: acidente de ônibus, uma família que se vê dizimada em desastre de automóveis. Ao final de feriados prolongados, a polícia federal faz o balanço dos mortos. Centenas. Quanta dor em tempo de festa e alegria! Brotam em nós gestos solidários.

Início de ano fala ainda mais em solidariedade. Parece que tudo começa de novo. Sonhamos ser possível que o velho mundo da fome, da miséria seja vencido. Natal mobiliza a muitos na confecção de cestas básicas para que chegue à mesa da falta algo que a supra. Aspiramos à utopia de que um dia nenhum brasileiro passe fome. Não bastam os atos solidários nalgum dia do ano porque a fome volta cada dia. Entretanto, os gestos solidários, mesmo isolados, antecipam a utopia de debelar definitivamente o flagelo terrível da miséria em nosso país.

“A fome é imoral”, a realidade mais imoral que existe nesse país. Todo projeto para debelá-la se revela pequeno diante de sua extensão. A responsabilidade cai sobre todos nós que dispomos dos bens necessários e até mesmo supérfluos. Os gestos solidários não se fazem para descarregar a consciência, mas para gestar novas atitudes solidárias e assim a utopia lança raiz na realidade, fazendo-se verdade.

Não precisamos esperar o início de ano para acordá-los. Que a solidariedade deixe o campo de gestos esporádicos e eventuais para entrar no "ethos", no costume, no cotidiano do nosso existir. Numa palavra: solidariedade necessita transformar-se em cultura.

Quando falamos de cultura, entendemos essa teia de símbolos e sentidos com que representamos a vida. Ela perpassa crenças, código de convivência familiar e comunitária. Cria técnicas e estratégias de reprodução do trabalho. Ora, se a solidariedade se faz cultura, então os olhos verão todas as coisas sob o seu prisma, as ações serão alimentadas por esse espírito. E toda a sociedade se modificará.

Só a solidariedade consegue reverter o ciclo de morte e de solidão que o egoísmo e individualismo da sociedade pós-industrial vêm preocupantemente gestando. Só ela rompe a espiral do descaso, do indiferentismo, do ceticismo cínico dos privilegiados dos bens materiais diante dos pobres e carentes. Só ela consegue trazer um pouco de verdadeira paz e alegria profunda àqueles a quem pesa a desventura de ser venturoso no meio dos desventurados. Advento, Natal, Novo ano: que a solidariedade desça da altura da utopia e se encarne na realidade diária do povo brasileiro!

Por João Batista Libânio - escritor e teólogo jesuíta

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