QUE IGREJA SONHO?

Senti, há uns dias atrás, uma necessidade imensa de dizer àqueles com quem partilho as delícias do Evangelho como é a Igreja que eu sonho. Respondi facilmente a mim próprio, com um sorriso, que é como Cristo a sonhou. Depois, ao chegar ao quarto, escrevi a pergunta no cabeçalho de uma folha em branco que pousei em cima da escrivaninha:

Que Igreja sonho?

A necessidade interior de proclamar a resposta está na própria causa da pergunta, que me provocou e inspirou a dizer mais que meias palavras e verdades subentendidas. Começo a sentir-me realmente farto de palavras bonitas que não deixam raiz no terreno profético e às vezes incômodo da Verdade(...)


Sonho a Igreja que Jesus sonhou e continua a sonhar, a que inaugurou e da qual continua a ser o permanente Princípio, como a Cabeça o é do Corpo, como dizia Paulo. Sim, a Igreja que Cristo continua a formar, chamar, inspirar e conduzir, porque um Ressuscitado é sempre nosso contemporâneo!

Sonho a Igreja que Cristo continua a sonhar, livre das infidelidades da Antiga Aliança, leve e fresca como a Água Viva do Espírito que a vivifica, livre e firme como a Palavra que a molda. Sonho a Igreja como Comunhão Universal de Comunidades, contextos privilegiados para a emergência da Palavra de Deus e para o acolhimento do Espírito Santo, para o crescimento permanente da maturidade da Fé, da fortaleza da Esperança e da seriedade do Amor.

Sonho a Igreja como resto fiel, minoria profética e memória subversiva daquele Messias morto há 2000 anos fora dos muros sagrados da tão religiosa e santa Jerusalém! Sonho a Igreja continuadora de todos aqueles que foram fiéis a Deus e ao Homem ao longo de toda a História da Revelação.

Acima de tudo, sonho a Igreja que sempre está urgente de sonhadores para continuar a acontecer, livres das “regras da sensatez” institucional que está sempre disposta a sacrificar a vitalidade da Verdade em nome da tranquilidade da instituição, e livres também do “medo senil e servil” que mata toda a diferença e novidade que ponha em causa as glórias do passado, ainda que falsas, ainda que feias.

Sonho a Igreja de Cristo, e não a igreja de mais ninguém! Sonho a Igreja dos que o amam acima de si próprios, dispostos a viver e a morrer por ele, sempre prontos a sofrer nas cruzes secularmente preparadas para os hereges, na certeza de que essas cruzes injustas e infiéis só se destroem colocando lá as costas!

Sonho a Igreja na qual Cristo me faz acreditar! Acredito numa Igreja de Caminhantes, os caminhantes da Liberdade, como aquele povo que se viu livre do Egito pelo Amor de predileção de Deus. A Igreja dos Caminhantes é aquela em que as comunidades são espaços pessoais de libertação, em que acontece a destruição interior de todos os “faraós” opressores e a marcha da Liberdade pelo “deserto” das dúvidas e da procura até à “Terra Prometida” que é saborear um Novo Sentido para viver, pleno, largo, sereno, perene, fonte de paz e fonte de fortaleza.

Acredito numa Igreja de Profetas, na dinâmica comunitária daqueles que estão implicados na Palavra que proclamam e celebram, aqueles que assumem a totalidade das consequências da sua Fé, da sua Esperança e do seu Amor. A Igreja dos Profetas é aquela que dá à luz gente capaz de morrer por Cristo, é a Igreja indomável diante dos poderes do mundo, contexto comunitário de amadurecimento pessoal de homens e mulheres que não se deixam domesticar pelas “falinhas mansas” de todos os anti-evangelhos de rosto sedutor que por aí andam.

Acredito numa Igreja de Salmistas, escola da beleza e da alegria que se inspira na Palavra de Deus e na Verdade de Cristo. A Igreja dos Salmistas é aquela que em todos os tempos, lugares e situações procura as melhores formas de dizer o Mistério da Fé, o louvor e a gratidão, de maneira a que os Homens possam entender e acolher. É a experiência comunitária que possibilita aprender a linguagem do Coração, feita de espontaneidade, intimidade, afetividade e verdade, segredos essenciais para uma comunicação eficaz da Fé.

Acredito numa Igreja de Discípulos, aquela em que a atitude fundante de todas as opções e escolhas é a escuta orante e sem preconceitos da Palavra do Mestre, fonte permanente de Sabedoria, novidade e apelos de mudança. A Igreja dos Discípulos é aquela em que ninguém se considera superior a ninguém e as comunidades se estruturam de maneira fraterna. O único Mestre é Jesus Cristo e a única Sabedoria que se procura é a do Espírito Santo. Os irmãos que estão especialmente capacitados para explicar o Mistério da Fé e as maravilhas do Amor de Deus fazem-no como um serviço alegre e um Carisma comunitário para o bem de todos, e não como forma de superioridade ou domínio sobre os outros.

Acredito numa Igreja de Apóstolos, homens e mulheres que se põem a caminho para anunciar o Evangelho aos seus irmãos – até com palavras se for preciso! – e que se tornam eles próprios Caminho do Evangelho para todos. A Igreja dos Apóstolos é aquela em que as comunidades não se fecham em si próprias mas se tornam Escolas de Missionários, comunidades vivas que assumem o apelo a ser “sal, luz e fermento” do Reino de Deus no mundo, em que os batizados são evangelizados e os evangelizados se sentem provocados a ser evangelizadores.

Acredito numa Igreja de Evangelistas, aquela em que as comunidades entendem a escuta da Palavra de Deus como atualização comprometida dessa Palavra de modo a que ela seja sempre Evangelho – Boa Nova – no concreto de cada tempo, lugar e situação. A Igreja dos Evangelistas é aquela que permanentemente atualiza a sua linguagem para proclamar o Evangelho de Jesus com a mesma força, audácia, profecia e atualidade dos primeiros tempos, aquela que não se deixa cristalizar em fórmulas e conceitos que já nada dizem, mas se recria no esforço de ser continuamente fiel ao Evangelho do Amor de Deus revelado e realizado em Jesus, que não pode ser nunca “letra morta” mas Palavra viva e vivificante pelo vigor e agilidade do Espírito Santo.

Acredito numa Igreja de Pecadores e Imperfeitos, aqueles para quem Deus pode ainda ser Graça, aqueles que se sentem tantas vezes pisados e desprezados pelos “puros e perfeitos” que já há uns anos também maltrataram o Mestre. A Igreja dos Pecadores e Imperfeitos é aquela em que as comunidades não conhecem divisões entre puros e impuros, aquelas em que, sem ingenuidades nem mediocridades, cada um é aceite tal como é e amado pela Verdade que procura no seu Coração. Para os Pecadores as iniciativas amorosas de Deus são sempre Graça e de graça, e não pagamentos divinos dos seus méritos. Para os Imperfeitos aos olhos dos que se consideram “perfeitos”, a Salvação é o Dom maior e mais admirável do nosso Deus, e não a recompensa eterna pelas suas virtudes. A Igreja dos Pecadores e dos Imperfeitos é aquela em que Deus tem espaço para ser Graça, e todos têm espaço para serem acolhidos sem se sentirem julgados.

Acredito numa Igreja de Pobres e Pequenos, aqueles que são capazes de perceber que a Vida é a sua maior riqueza, os que não têm os dias sempre cheios demais para dar importância quotidiana à Palavra de Deus, os que não estão sempre a pensar no que podem ganhar ou perder em cada opção que haja a tomar.A Igreja dos Pobres e Pequenos é aquela em que as comunidades não querem possuir nem dominar, onde cada um está disponível para partilhar com os outros o que tem, sabe e é. Os Pobres são aqueles que não se recusam a aderir aos projetos de Cristo por medo do que possam perder ou ter que deixar em seu Nome. Os Pequenos são os que não precisam de ser grandes para se sentirem felizes, porque já têm maturidade suficiente para perceber que a única grandeza verdadeira é a do Coração, porque só essa é eterna. A “grandeza” que empequenece os outros à sua volta é uma mentira, nada mais que uma pequenez aumentada até ao ponto de oprimir outros. A verdadeira grandeza é aquela que engrandece os que estão ao lado. Na Igreja dos Pobres e Pequenos todos são profundamente Ricos e Grandes, porque recupera-se o gosto pelas coisas simples e o maravilhamento pelas belezas não maquilhadas da Vida e da Criação. A Palavra de Deus e o Espírito Santo não deixam que se embruteça o Coração com a brutidade da presunção e da vaidade.

Acredito numa Igreja de Pagãos, aquela em que Deus é mais que uma milenar herança familiar e a religião não é uma tradição que passa de geração em geração para contar historinhas às crianças e as ameaçar quando não querem comer a sopa. A Igreja dos Pagãos é aquela em que Deus pode ser Deus, na totalidade da Sua novidade, na experiência maravilhosa de O conhecer sempre como pela primeira vez, na Verdade inesperada da Sua Revelação. Os Pagãos são aqueles para quem Deus não é um hábito, os que estão livres de todos os “vícios da religião”, os que não querem “ensinar Deus a ser Deus” mas O acolhem livres de esquemas, doutrinas e preconceitos muitas vezes colocados nas cabeças das pessoas muito antes ainda de elas serem capazes de pensar conscientemente, refletir e ajuizar criticamente. A Igreja dos Pagãos é aquela em que o Espírito Santo tem toda a liberdade para circular “como o vento, que ninguém sabe de onde vem nem para onde vai, mas escuta-se a sua voz”. É também aquela em que Jesus tem todo o espaço para ser acolhido na sua novidade e diferença, onde não lhe acontece de novo como lhe aconteceu com aquele povo antigo que, na cidade de David, o símbolo de toda a Esperança Messiânica, “não teve lugar” para um Messias como ele.

Acredito numa Igreja de Mártires, homens e mulheres de Fé madura que já compreenderam que a única maneira de dar provas dela é o Testemunho. A Igreja dos Mártires não se enreda em filosofias baratas nem se põe a discutir os assuntos do Evangelho e da Verdade como se defendesse uma ideologia. É a Igreja de comunidades sempre a caminho da Verdade maior da Vida que é a Coerência, onde não se usam “slogans” nem frases feitas como remédios milagrosos para as agruras da Vida. Nesta Igreja dos Mártires aprende-se a passar constantemente do Luto à Luta, na certeza de que Deus está sempre com os Seus, mas nunca no lugar deles! Os Mártires são os que se comprometem no Testemunho da Verdade até que doa, até que sangre. O único medo que realmente lhes assusta o Coração é o de viverem uma Vida absurda. Tudo o resto são adversários menores que acabam por ser destruídos pelo Amor, ainda que essa fidelidade faça alguns passar pelo sofrimento e pela morte. Que importa?! A Palavra definitiva da Vida pertence a Jesus Cristo, o Vencedor da Vida e da Morte, e essa Palavra é “Ressurreição”!

Sonho unicamente com esta Igreja que amo e na qual acredito profundamente.

Uma Igreja em que o Anúncio do Evangelho seja a primeira ocupação, uma Igreja em que a Pessoa Humana seja o primeiro valor, uma Igreja em que o Amor seja o primeiro critério, uma Igreja em que o Serviço seja a primeira atitude.

Repudio a igreja dos falsos profetas, aqueles que ousam pôr na boca palavras que ainda não lhes passaram pelo Coração, os que vivem à custa de um Deus que não amam nem servem. A igreja dos falsos profetas é o submundo apodrecido dos que se servem daquele Deus a Quem dizem servir, os que usam o Seu Nome para procurar os seus próprios interesses, consolações e riquezas, os que não estão implicados nas palavras que debitam, quase sempre iguais, nem são para ninguém Palavra Viva das palavras que dizem!

Repudio a igreja dos fariseus, aqueles que se consideram a medida perfeita de Deus e dos Homens, os que se têm a si próprios como critério para falar de Deus e avaliar os outros. A igreja dos fariseus é a forma mais sutil de ser Anticristo, muitas vezes até em seu Nome! Os fariseus são os que substituíram o coração por uma régua, trocaram os olhos por microscópios, as mãos por algemas, e quando falam vemos-lhes a língua bifurcada dentro da boca, se estivermos atentos. Fazem mal a toda a gente, a começar por si próprios, porque são o oposto da imagem e semelhança de Deus revelada em Jesus Cristo.

Repudio a igreja dos sacerdotes de templo, a casta que se considera superior à “reles gente”, os insubstituíveis da relação de Deus com o Seu povo, homens vaidosos e inchados que quase sempre se tornam um dos extremos da mediocridade: inúteis ou mercenários. A igreja dos sacerdotes de templo é aquela em que os peritos do culto querem mandar e perceber mais que o Espírito Santo quando se trata da relação do Homem com Deus. O cumprimento das normas substitui facilmente a Verdade, os ritos ocupam o lugar do Amor e a função do sacerdote esgota toda a ação da comunidade.

Repudio a igreja dos doutores da lei, aquela em que se pensa que a Vida está escrita nos livros e a Verdade está só na mão de dois ou três “iluminados”. A igreja dos doutores da lei é aquela que tem medo da desinstalação, tem medo da liberdade do Espírito Santo, das Suas inspirações e provocações. Os doutores da lei são os que permanentemente querem impor as suas verdades a Deus e aos outros. São os que se deixam cair na tentação de reduzir a Palavra de Deus às verdades curtas de uma doutrina de Catecismo, e querem substituir o Espírito Santo pelas normas de um Direito Canônico.

Repudio todas as formas de ser igreja que não proclamam nem constroem a Igreja de Cristo, a dinâmica comunitária por ele sonhada e iniciada com aqueles Doze pobres que não viriam nunca a ter outra autoridade senão a de dar o próprio sangue pelo Mestre Ressuscitado! A Verdade de Cristo é uma “Verdade que nos faz Livres”, e só pode levar o nome de “cristão” aquilo que for libertador. A Verdade de Cristo não é uma “verdade de saber” mas uma “Verdade de Ser e Viver” que ultrapassa todos os enganos e todos os absurdos, até o pecado, até a morte!

Só é libertador o que nos abarcar a Vida por inteiro, não apenas uma parte ou uma dimensão. Só somos radicalmente livres quando descobrimos razões válidas para viver e morrer, se for preciso. Aí ficamos verdadeiramente livres, até de nós próprios. E só quando conseguimos libertar-nos da derradeira escravidão que são os nossos próprios medos, preconceitos e falsas seguranças, só aí é que somos inteiramente livres para aquilo que amamos. Livres e fortes! E audazes, também… E felizes, sobretudo, felizes…

Quando encontramos na vida razões de ser maiores que nós próprios, então é que descobrimos a nossa real envergadura como pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus e recriadas na Ressurreição de Jesus Cristo.

FONTE: Rui Santiago cssr

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