O PRESBÍTERO: UNGIDO, POETA E SERVIDOR

O presbítero: breve história de uma identidade

O termo presbítero já por si só chama a atenção. Etimologicamente pode ser traduzido por ancião, velho, aquele que precede os outros em idade e, portanto, em sabedoria. No Novo Testamento, as palavras pastor, bispo e presbítero descrevem os mesmos homens (Atos 20:17,28; 1 Pedro 5:1-3; Tito 1:5-7). Eles servem em assembleias eclesiais locais, cuidando do rebanho de Deus
A palavra "Presbítero" (ancião em algumas versões da Bíblia) descreve alguém de idade mais avançada. A palavra é usada na Bíblia para identificar alguns dos líderes entre os judeus. No livro dos Atos e nas epístolas, os homens que pastoreavam e supervisionavam as igrejas locais foram frequentemente chamados de presbíteros (veja Atos 11:30; 14:23; 15:2,4,6,22,23; 16:4; 20:17; 21:18; 1 Timóteo 5:17,19; Tito 1:5; Tiago 5:14; 1 Pedro 5:1; 2 João, 1; 3 João 1). São homens de idade suficiente para ter filhos já crentes. Necessariamente são alguns dos mais maduros dos cristãos na congregação. Usam seu conhecimento e experiência para servir como modelos e ensinar o povo de Deus(...)

Numa época como a nossa, quando a idade e a experiência são desprezadas em favor da inexperiente juventude da qual se pode tirar proveito e produção mais abundante e imediata, é digno de nota que a Igreja primeva constitua os anciãos, os mais velhos, os presbíteros, como os guias do povo de Deus.
Posto que o termo sacerdos se aplicava tanto aos bispos como aos sacerdotes, e só se pode ser presbítero pela ordenação sacerdotal, o termo presbítero logo perdeu seu significado original de “ancião” e se aplicou unicamente aos ministros do culto e do sacrifício (quer dizer, o que corresponde ao nosso sacerdote).
O Concílio Vaticano II, no decreto Presbyterorum Ordinis, ratificará a escolha neotestamentária e acrescentará que o presbítero não é apenas alguém experiente ou mais experiente, mas alguém que participa intimamente da unção do único Ungido, que é Jesus Cristo: Com efeito, os presbíteros, em virtude da sagrada Ordenação e da missão que recebem dos bispos, são promovidos ao serviço de Cristo Mestre, Sacerdote e Rei, de cujo ministério participam e mediante o qual a Igreja continuamente é edificada em povo de Deus, corpo de Cristo e templo do Espírito Santo.
Porém, é bem claro que não é enquanto indivíduo isolado que alguém é escolhido dentro da comunidade para a missão de presbítero.

Tomado dentre os homens e ungido pela unção de Cristo

Na verdade, segundo o Concílio, é todo o povo de Deus e não apenas o presbítero que participa da unção do Messias. O Senhor Jesus, “a quem o Pai santificou e enviou ao mundo” (Jo 10,36) tornou participante todo o seu corpo místico da unção do Espírito com que ele mesmo tinha sido ungido: nele, com efeito, todos os fiéis se tornam sacerdócio santo e real, oferecem hóstias espirituais a Deus por meio de Jesus Cristo, e anunciam as virtudes daquele que os chamou das trevas para a sua luz admirável. Não há, portanto, nenhum membro que não tenha parte na missão de todo o corpo, mas cada um deve santificar Jesus no seu coração, e dar testemunho de Jesus em espírito de profecia.
O sacerdócio para o qual o presbítero é ungido e constituído, portanto, não é só seu, mas de todo o povo de Deus. Todo o povo que, em virtude de seu Batismo, participa da condição e do múnus sacerdotal enquanto sacerdócio universal, que oferece a Deus o sacrifício e a oblação da própria vida. Qual seria, então, o específico da vida e da vocação presbiteral?
A Revelação e a tradição da Igreja nos dizem que os presbíteros são tirados, postos à parte, escolhidos dentre os seres humanos e constituídos em favor desses mesmos seres humanos nas coisas que se referem a Deus, para oferecerem dons e sacrifícios pelos pecados. Porém, isto não os isola do mundo e do resto da humanidade nem os situa em patamar acima destes. Pelo contrário, são chamados a conviver humilde e fraternalmente com os restantes homens. Assim fazendo, seguem o Senhor Jesus, Filho de Deus, o qual, enviado como homem no meio dos homens, habitou entre nós, tomou nossa carne mortal e quis assemelhar-se em tudo aos seus irmãos, menos no pecado.
A unção do presbítero, portanto, está em estreita ligação com o mistério da Encarnação. Trata-se de uma eleição que não constitui privilégio, mas pélo contrário, abdicação de privilégios, despojamento e esvaziamento de si mesmo, à semelhança de Jesus Cristo que “sendo de condição divina, não se aferrou a suas prerrogativas, mas despojou-se, esvaziou-se, humilhou-se, sendo achado como um de tantos...obediente até a morte e morte de cruz “ (Fil 2, 5-11). A eleição do presbítero é, portanto, uma eleição kenótica e que faz de sua existência – apesar dos poderes que doravante lhe são concedidos pela ordenação - uma pró-existência, ou seja, uma existência “fora de si”.
Já os apóstolos seguem esse caminho, na esteira do Mestre, e testemunha São Paulo, doutor dos gentios, “escolhido para anunciar o Evangelho de Deus” (Rm 1,1), que se fez tudo para todos, para salvar a todos. Os presbíteros do Novo Testamento, em virtude da vocação e da recepção da imposição das mãos, de algum modo são escolhidos entre o povo de Deus, mas não para serem separados dele ou de qualquer ser humano, e constituírem casta à parte, mas para se consagrarem totalmente à obra para a qual Deus os escolhe e envia. Não poderiam ser ministros de Cristo se não fossem testemunhas e dispensadores de valores escatológicos, porém são chamados a se-lo bem inseridos na vida histórica e terrena de toda a humanidade. Testemunhas de uma vida diferente daquela contida dentro dos limites do tempo e do espaço históricos, não poderiam servir às pessoas se permanecessem alheios à sua vida bem concreta e às suas situações. A cavaleiro entre o Transcendente e o Histórico, portanto, é onde a unção do presbítero o leva.
Seu próprio ministério exige que o presbítero – enquanto posto à parte e escolhido dentre os seres humanos - não se conforme com este mundo. A única con-formação admitida àquele que é chamado ao ministério sacerdotal é a cristificação, ou seja, a conformação a Cristo, o fazer-se um só com Ele, já que Cristo é o único sacerdote e todo sacerdote não tem outro caminho a seguir senão identificar-se com Ele para viver e desempenhar seu próprio ministério.
O sacerdócio de Cristo reúne os dois elementos do sacerdócio cultual e do profetismo em interna e fecunda unidade. Na verdade, é mais que profecia, revelação pela palavra ou missão de pregação, já que Cristo, enquanto Deus e homem, é a decisiva realidade salvadora em si mesmo. É mediador e, portanto,sacerdote e sacrifício. E este sacerdócio é ação fundadora de Deus mesmo . E porque é sacramental, necessita de uma presença que seja ao mesmo tempo palavra. O poder sacerdotal dado pela unção é portanto um poder a serviço do sacerdócio de Cristo e, dado na fragilidade humana, se comunica e se faz presente no meio do mundo e entre os seres humanos.
Sendo autêntico sacerdócio, portanto, o ministério sacerdotal na Igreja não se limita a “simbolizar” cultualmente uma realidade ausente, mas atualiza verdadeiramente algo realizado desde sempre por Cristo, e diz realmente palavras proféticas vindas diretamente de Deus em uma missão real, não se limitando tampouco a anunciar a própria opinião sobre certas coisas, mesmo religiosas.
No entanto, a unção recebida exige também que os presbíteros vivam neste mundo entre os homens e se façam tudo para todos e sejam vistos como um de tantos, no seguimento de seu Senhor. Não podem, portanto, desempenhar sua missão fora ou afastados do convívio humano onde se encontram com seus semelhantes e irmãos. Por outro lado, são chamados a dar testemunho a estes mesmos irmãos com quem convivem, praticando as virtudes como a bondade, a sinceridade, a força de alma e a constância, o cuidado assíduo da justiça, a delicadeza, e outras que o Apóstolo Paulo recomenda quando diz: “Ocupai-vos com tudo o que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, vituoso ou que de qualquer modo mereça louvor” (Fl 4,8).
A vocação, portanto, é de toda a comunidade, à qual o presbítero pertence e em virtude da qual é escolhido e chamado. Pertence à comunidade ao serviço da qual ele está e para a qual é constituído pastor. Por outro lado, o presbítero deve ser suportado pela mesma comunidade da qual foi tirado para a ela voltar com uma missão específica. E, por sua vez, guia e suporta a comunidade como intermediário entre ela e o único mediador que é Jesus Cristo.
O Concílio afirma, com sublinhada força, a "comum" vocação à santidade. Esta vocação, fundamentada no Batismo, caracteriza ao presbítero como um "fiel" (Christifideles), como um "irmão entre irmãos", inserido e unido ao Povo de Deus, com a graça e o dom gozoso de com eles compartilhar os dons da salvação (cf. Ef. 4, 4-6) e no esforço comum de caminhar "segundo o Espírito", seguindo ao único Mestre e Senhor. Recordemos a célebre frase de Santo Agostinho: "Para vós sou bispo, convosco sou cristão. Aquele é um nome de ofício recebido, este é um nome de graça; aquele é um nome de perigo, este de salvação".
Portanto, pela unção que recebe e que o identifica a Cristo dentro da comunidade, um padre, um presbítero, é alguém que aparece diante dos olhos daqueles que professam a fé católica como alguém escolhido e ungido especialmente por Deus para uma missão sobrenatural. Como tal, espera-se que tal pessoa, que responde a tal vocação, se conduza de modo digno do chamado que recebeu; que professe uma conduta ética irrepreensível, que dê testemunho de um caráter sem mancha; e que visibilize de maneira singular a figura de Jesus Cristo, que passou pela vida fazendo o bem.
É muito difícil que as pessoas se dêem conta de que um padre, apesar da grandeza da missão que carrega, é alguém frágil como qualquer outro. Que tem suas tentações, suas dificuldades afetivas e que pode errar, cair, pecar, sem que por isso a realidade sobrenatural de seu ministério se veja afetada ou diminuída, já que não depende dele e sim de Deus.
Aí está a maravilha e ao mesmo tempo o drama da vocação do presbítero. O poder que recebe pela unção divina não é existencialmente fundante. Isso no sentido de que a eficácia dos poderes sacerdotais, estritamente enquanto tal, é independente da realização existencial-humana destes poderes. Porém isto não quer dizer, de modo algum, que a ação cultual, ainda que seja “válida”, em todo caso independentemente da “dignidade” do sacerdote, não exija a correspondente atitude existencial por parte deste.
Exige-a, sim, já que ao oferecer o sacrifício e celebrar o culto, o sacerdote oferece o sacrifício como seu próprio e se apropria pessoalmente, mediante a fé e o amor, o sacrifício de Cristo nele atualizado. Mas quando faz isto – e aqui chamamos especialmente a atenção, o sacerdote está realizando precisamente o ato ao qual todo cristão está chamado. Desde o ponto de vista existencial, não pode apropriar-se o sacrifício mais que qualquer cristão normal, porque o sacrifício de Cristo foi destinado a todo o Corpo de Cristo, antes de que sua atualização fosse confiada ao sacerdote.
Ministro do culto e da palavra, o sacerdote é marcado para sempre pelo caráter conferido pelo sacramento. O sacramento e a existência sacerdotal, que enquanto tal tem realmente características essenciais, se fundam imediatamente no caráter do sacerdote enquanto apóstolo, de maneira que esta missão é, por sua parte, um elemento do sacerdócio oficial cultual.

Poeta da protopalavra

O presbítero é, ao mesmo tempo, anunciador e proferidor da palavra. A pregação é parte intrínseca e constitutiva de sua vida e ministério e a ela ele está submetido, pois a palavra que pronuncia e anuncia é normativa, não apenas para sua vida mas para toda a vida da Igreja a quem serve.
Por isso, na vida e ministério do presbítero está uma relação íntima e constitutiva com a palavra. Ora, a palavra humana é uma das dimensões mais profundas e constitutivas da humanidade mesma. É mais que um pensamento. É um pensamento encarnado. É a corporeidade na qual existe primariamente, esculpindo-se, aquilo que agora pensamos e experimentamos. É, no dizer de Rahner, o pensamento corpóreo, e por isso é mais que pensamento, é originariamente anterior a ele, assim como a humanidade supera e antecede ao indivíduo.
Há palavras que dividem e limitam, que afastam e separam. Mas há palavras que são fatores de união e levantam o coração. São mensageiras da Realidade, senhoras nossas, nascidas do coração, proclamadoras, gratuitas. A estas chamaremos, junto com Rahner, palavras originais ou protopalavras.
Na ordem da criação, a palavra foi confiada ao poeta. O poeta é, pois, alguém que sabe dizer protopalavras grávidas de sentido. E ele as diz igualmente desde uma gravidez e desde um parto, pois a vinda à luz desta palavra é todo um trabalho onde o processo da vida está presente por inteiro. Assim, o poeta se liberta e liberta a humanidade da violência muda dos instintos e faz acontecer a realidade ali onde ela estaria condenada à morte pela mudez do espírito. É assim que o poeta, mais excelentemente que os outros homens, ao pronunciar protopalavras, chama as coisas por seus nomes, continuando assim a obra do pai Adão.
A protopalavra do poeta é pois, acima de qualquer outra expressão, o sacramento primário das realidades. E o poeta é o administrador deste sacramento, incumbido que é de resgatar a realidade das trevas e levanta-la até a luz onde possam ser vistas e pronunciadas.
O sacerdote, por sua vez, é aquele a quem foi confiada a palavra e é seu administrador por excelência. E esta palavra que lhe foi confiada é a protopalavra entre todas as outras, já que é a palavra eficaz do próprio Deus. A palavra pronunciada pelo sacerdote é palavra de Deus, pronunciada por este na infinita descida de sua autorevelação. O Logos, Verbo Eterno de Deus, ao fazer-se carne, pode fazer-se também palavra humana. Deus, em sua infinita misericórdia, vem na graça e no verbo. E a palavra é a corporeidade de sua graça.
Essa palavra é livre e não se encontra em qualquer lugar do mundo. Deve ser pronunciada no meio do mundo por Jesus Cristo e pelos mensageiros que Ele envia. O mensageiro por excelência, o arauto dessa palavra é o sacerdote. Por isso, tal como o poeta, o sacerdote não é dono de sua palavra. Ela lhe é dada por Outro e ele é chamado a submeter-se humildemente ao seu poder, já que tem consciência que essa palavra aponta à palavra falada por outro. O presbítero, com sua ancianidade e experiência, é chamado então a desaparecer por trás do transmitido, da mensagem, daquilo que a palavra quer veicular, da realidade que a palavra quer criar.
Portador de uma palavra que faz acontecer no meio do mundo nada mais do que a graça e a salvação de Deus, que não acontecem sem serem ditas, o presbítero é chamado a ser o veiculador desta palavra operante e eficaz que, ali onde é pronunciada, faz surgir uma nova realidade. Muitas são as palavras pronunciadas pelo presbítero que plantam no chão da vida esta realidade nova, que nunca envelhece ou caduca: a homilia, a oração, a liturgia. Existem, porém, as palavras faladas em primeira pessoa, onde o presbítero aparece em sua realidade de cristóforo, portador de Deus, de maneira mais evidente e palpável.
Uma é a palavra do perdão. “Eu te absolvo”. E com o pronunciar desta protopalavra, o perdão do Pai que é pura misericórdia, o perdão já dado desde toda a eternidade, pela autoridade do Filho se faz presença absolvente, verdadeira, purificadora, permitindo que ali onde reinava a treva, a desolação e o pecado brilhe a graça, a inocência batismal resgatada em toda a sua pureza e valor.
Outra – esta sim a prototípica mais que todas as outras, e da qual todas as outras não são mais que derivações e variantes – é a que diz de uma só vez o todo, porque ao ser pronunciada e escutada, nada mais” que o sacerdote pronuncia, absorvido na pessoa da Palavra encarnada do Pai, ao sussurrar: “Isto é o meu corpo. Este é o cálice do meu sangue”, na Eucaristia. “ Aqui ressoa unicamente a palavra de Deus. É a própria palavra criadora, revelada, prescritiva, salvadora, que ressoa operante e eficazmente.
Por isso podemos dizer que, assim como a missão do presbítero se confunde com a missão do profeta, essa mesma missão desse mesmo presbítero se confunde com a missão do poeta. O sacerdote é aquele a quem foi confiada a palavra, aquela palavra única, -o próprio Cristo - que, no que diz o sacerdote, se diz a si mesmo como oferta nossa ao Pai. Assim, a palavra do sacerdote anuncia os mais remotos mistérios escondidos nos abismos da Divindade. E seu dizer não permanece um mero dizer, pois ao anunciar Jesus, sua encarnação, vida, morte e ressurreição, faz presente entre nós aquele que viveu aquela vida e morreu aquela morte. E que não permaneceu cativo do poder da morte, mas foi suscitado dentre os mortos por seu Deus e Pai. E por isto estamos salvos. O sacerdote é o arauto da sua e nossa salvação pela palavra, pela protopalavra que lhe foi confiada, e que é Jesus Cristo, a Palavra pronunciada desde antes da criação do mundo, e que se fez carne e habitou entre nós.
Neste sentido, o sacerdote redime e liberta o existir poético, dando-lhe seu derradeiro sentido e encontra por sua vez no dom da criação poética um carisma para sua própria plenitude. Ali onde a palavra de Deus enuncia o mais sublime e o faz penetrar no fundo do coração do homem, ali está também a palavra poética humana. O sacerdote suscita e evoca o poeta, com quem é identificado, a fim de que suas protopalavras sejam vasos consagrados nos quais se pode distribuir eficazmente a palavra divina.

O servidor do povo

A vida e o ministério do presbítero é, finalmente, um serviço. Configurado a Jesus Cristo, servo de Javé, que se despojou de suas prerrogativas para tornar-se o servo de todos, o presbítero é igualmente um servidor. Tirado dentre os outros homens por um chamado e uma vocação específicas, constituído responsável pela protopalavra de Deus que é seu próprio Filho e pela administração dos mistérios e sacramentos de Deus, sobretudo da Eucaristia, cume da vida da Igreja, o presbítero é chamado a estar no mundo sem ser do mundo e, mais, a estar em si ainda que vivendo “ fora de si”, vivendo uma pró-existência.
Seus poderes nascem da impotência assumida voluntária e livremente pelo Filho de Deus, que se despojou, se fez carne vulnerável e mortal, obediente até a morte de Cruz. São, portanto, poderes que devem ser assumidos e exercidos como serviço. Serviço até o limite das forças e das energias daqueles e daquelas que constituem o povo de Deus em favor do qual o presbítero foi constituído tal.
Isso que se diz do presbítero, é, em verdade, prerrogativa de todo batizado. Sepultado na morte de Cristo pelo Batismo, o cristão é chamado a morrer ao que nele é antigo a fim de ressurgir com Cristo para viver uma nova vida e – mais que isso – ser uma nova pessoa. Esse novo existir e viver significa para ele viver uma vida onde o serviço é o centro existencial de tudo que existe. O cristão pelo seu Batismo é chamado a ser servo dos outros em tudo: em suas necessidades materiais, psicológicas, espirituais. E essa disponibilidade ao serviço deve ser, nele, disponibilidade que inclui o acolhimento do sofrimento como da alegria, da pena como da glória, da impotência como do poder.
O segredo de uma vida que é serviço é, na verdade, que seu ponto de referência não é mais o eu, mas o outro. A alteridade é a matriz a partir da qual o cristão é chamado a entender sua vida, seu destino e sua morte. O outro vem primeiro, é pelo outro e pelos outros, é para o outro que vivemos, nos movemos e existimos. Recebemos o ser deste Outro que é Deus, somos chamados a viver servindo os outros em quem Ele disse estar presente e onde podemos com maior certeza encontrá-Lo. Não é à toa que já a Torah judaica resume a Lei no mandamento do amor, que consiste em amar a Deus de todas as forças, de todo coração e com todo o entendimento e ao próximo como a si mesmo. E a razão é a santidade de Deus: “Fazei isto porque eu sou santo”.
Dentre os batizados, os diferentes estados de vida são chamados a viver esse compromisso primordial de diferentes e específicas maneiras. Concretamente o presbítero, tirado do meio dos homens, configurado a Cristo pelo sacramento da Ordem, é chamado a vive-lo com contornos muito próprios.
Além do serviço da palavra e dos sacramentos, é chamado a exercer na comunidade eclesial o serviço de educador na fé. Já o diz a PO: cabe aos sacerdotes, como educadores na fé, cuidar por si ou por outros que cada fiel seja levado no Espírito Santo a cultivar a própria vocação segundo o Evangelho, à caridade sincera e operosa, e à liberdade com que Cristo nos libertou. E este serviço pedagógico implica ajudar a todos a promover a maturidade na fé, para que até nos acontecimentos grandes ou pequenos consigam ver o que as coisas significam, qual é a vontade de Deus. Significa igualmente ensiná-los a não viverem só para si, mas, segundo as exigências da nova lei da caridade, cada um, assim como recebeu a graça, a administre ao outro, e assim todos cumpram cristãmente os seus deveres na comunidade humana.
Neste serviço de educação na fé, lembra o Concílio prioritariamente que este deve ser exercido em favor dos pobres, com os quais o próprio Senhor se mostrou associado, e cuja evangelização é apresentada como sinal da obra messiânica. Assim também os jovens são destinatários privilegiados desse serviço educativo que os presbíteros são chamados a prestar.
Em todo caso, embora fazendo estes destaques, é toda a comunidade cristã que deverá ser desvelada e zelosamente educada pelo serviço presbiteral, o qual deverá estar todo tempo saindo de seu próprio amor, querer e interesse a fim de ensinar o que é bom e agradável a Deus em todo tempo e lugar.
Vivendo como servidor do povo que o constituiu como ministro, o presbítero estará em todo tempo e lugar e de maneira verdadeira e radical, vivendo aquilo que está na raiz etimológica da denominação de sua condição. E que nos é relembrado nas luminosas palavras do Ressuscitado a Pedro, no capítulo 21. de João, quando, após perguntar-lhe três vezes se o amava, o Ressuscitado dirá a seu inseguro apóstolo, por ele constituído chefe da Igreja: “Quando eras jovem, tu mesmo te cingias e ias aonde querias. Quando fores velho, outro te cingirá e te conduzirá onde não queres.” E acrescenta o evangelista: Disse isso para significar com que morte havia de glorificar a Deus.
A vida do presbítero enquanto servidor do povo e da comunidade da qual saiu e à qual retorna para servir tem que ser esse contínuo sair de si mesmo, esse contínuo não se pertencer, esse perene ser conduzido aonde não quereria, se fosse conduzido por suas inclinações naturais. Mas aí vai porque é aonde o conduzem o amor e a obediência a seu Senhor que o escolheu e o tirou do meio dos outros homens a fim de ser no mundo sua boca e seu ministro; aonde o conduzem também e igualmente o amor e o serviço humilde aos seus irmãos, sobretudo aos mais pobres e mais fracos, a fim de anunciar-lhes a boa nova do Evangelho e restaurá-los na sua dignidade de filhos e filhas amados de Deus.
Vivendo isso, o presbítero estará contribuindo para criar um novo modelo de Igreja, mais de acordo ao sonho de Jesus e ao projeto do Pai.

Conclusão: um novo modelo de Igreja

Em algumas tendências teológicas mais recentes, percebe-se a tentativa de superação das contraposições inerentes a um modelo que dificulta a vida e a missão do presbítero tal como acima descrita. Trata-se de contraposições que compreendem a Igreja como um campo de contraposição clero X laicato. Nesta concepção, o que se acentua na vida e no ministério do presbítero apenas o poder e a superioridade em relação aos outros batizados.
Hoje se questiona profundamente se tais contraposições não seriam empobrecedoras ou mesmo um tanto redutoras da amplidão do espírito da eclesiologia conciliar baseada sobre a categoria totalizante de Povo de Deus. Essas novas teologias propõem a superação das citadas contraposições por meio de um novo eixo, desta vez não de contraposição, mas de tensão dialética: o eixo comunidade ----- carismas, ministérios.
Assim a Igreja redescobre sua vocação de comunidade batismal englobante, no interior da qual os carismas são recebidos e os ministérios exercidos como serviços em vista daquilo que toda a Igreja deve ser e fazer. E a vida espiritual de todo o Povo de Deus pode beber do mesmo Espírito que não discrimina suas maravilhas segundo as categorias jurídicas, derramando-as com total prodigalidade e generosidade. E pode, sem riscos de "inadequação", encontrar pela via da inspiração as diferentes expressões deste Espírito no mundo e na história, na vida pessoal e comunitária.
Dentro desta concepção eclesial renovada, os presbíteros, portanto, só encontram realmente o fundo mais profundo e mais fecundo de sua identidade e missão na relação estreita e fraterna com os outros segmentos do povo de Deus: com os bispos em primeiro lugar, numa relação que deve ser de profunda comunhão suscitada pelo próprio Espírito Santo, derramado sobre uns e outros no sacramento da Ordem que ambos partilham. Esta comunhão manifestam-na de modo perfeito, por exemplo, na concelebração litúrgica: juntamente com eles, confessam que celebram o banquete eucarístico. Os bispos, em virtude do dom do Espírito Santo dado aos presbíteros na ordenação, têm-nos como necessários cooperadores e conselheiros no ministério e múnus de ensinar, santificar e apascentar o povo de Deus.
Por causa desta comunhão no mesmo sacerdócio e ministério, os bispos devem estimar os presbíteros, como irmãos e amigos, e procurar sempre o bem deles, quer o material, quer sobretudo o espiritual. Recai sobre eles, muito particularmente, a grave responsabilidade do equilíbrio afetivo e psicológico e da santidade dos seus sacerdotes; ponham, pois, particular empenho na contínua formação do seu presbitério. Estejam dispostos a ouvi-los com carinho e paciência, consultem-nos e troquem com eles impressões sobre os problemas pastorais e o bem da diocese.
Os presbíteros devem igualmente ser muito amigos, fraternalmente, entre si. De minhas experiências em dar retiros para clero, me impressiona a tremenda solidão em que se encontram certos padres diocesanos, com uma carga e um volume brutais de trabalho e sem uma instancia comunitária onde possam se expressar livremente, rezar juntos, partilhar suas angústias e alegrias de igual para igual, como irmãos, fraternalmente. Assim se pode crescer enquanto corpo sacerdotal e quem ganha são não apenas os presbíteros, mas toda a Igreja.
Finalmente, a relação dos presbíteros com os leigos e leigas. E com os religiosos e religiosas que são leigos canonicamente falando. Juntamente com os fiéis, são discípulos do Senhor, constituídos participantes ao seu Reino pela graça de Deus que os chama. Regenerados com todos na fonte do batismo, os presbíteros são irmãos entre os irmãos, membros dum só e mesmo Corpo de Cristo cuja edificação a todos pertence.
O Concílio vai longe nas recomendações de fraternidade e amorosas relações entre os presbíteros e o restante do povo de Deus. São palavras textuais da PO: Os presbíteros, finalmente, foram postos no meio dos leigos para os levar todos à unidade da caridade “amando-se uns aos outros com amor fraterno, cada um considerando o outro como mais digno de estima” (Rm 12,10). É, pois, dever deles congraçar de tal maneira as diferentes mentalidades que ninguém se sinta estranho na comunidade dos fiéis. São os defensores do bem comum, do qual têm cuidado em nome do Bispo, e simultaneamente reivindicadores da verdade para que os fiéis não se deixem enredar por qualquer doutrina.56 São-lhes confiados com peculiar solicitude os que se afastaram da prática dos sacramentos e sobretudo da fé, dos quais, como bons pastores, não deixarão de se aproximar.
Segundo as normas sobre o ecumenismo,57 não esqueçam os irmãos que não vivem em plena comunhão eclesial conosco.
Terão ainda como confiados a si todos os que não reconhecem Cristo como seu Salvador.
Dentro deste capítulo das relações com os mal chamados leigos , gostaria de fazer um destaque final para a questão da relação do presbítero com a mulher. Sobre a corporeidade feminina pesa um estigma que vem de muito longe, do inconsciente coletivo da humanidade e que passa por todas as religiões, mas muito concretamente pela tradição judaico-cristã.
Feita – erradamente, como diz o Papa João Paulo II na carta Mulieris Dignitatem – responsável primeira do pecado original e da queda e condenação da humanidade, a mulher se tornou para um certo judaísmo aliada do perigo, da tentação e da morte. Apesar de todas a revolução trazida por Jesus, que teve as mulheres entre suas mais queridas amigas e destinatárias privilegiadas de seus milagres, que à diferença dos outros rabis admitiu mulheres em seu grupo mais próximo, que teve sempre carinho e t ernura para com elas; apesar da inspirada intuição da primeira Igreja que instaurou como porta de entrada no Cristianismo um rito não sexista como o Batismo, inteiramente diferente das circuncisão, que passa necessariamente pela anatomia masculina ; temos que admitir que a presença da mulher ainda é, em certos meios clericais, um elemento perturbador. Trata-se da tentação presente, provocadora e ameaçadora da castidade do clero e da pureza do culto. Trata-se de algo ou melhor de alguém cuja sintonia com o sagrado aindas é parcial e defeituosa, não podendo jamais ser total. Isso acarreta que o tratamento por alguns presbíteros dispensado à mulher muitas vezes seja de suspeita, distância que fere e magoa. Ou então de uso e abuso – perdoem a franqueza – como mão de obra barata., simpática e sempre disponível para todas as tarefas, sobretudo as mais modestas, que ninguém quer assumir.
Creio que aqui está posto um grave desafio à vida e ministério do presbítero, ungido, poeta e servidor. O desafio de abrir as portas do coração a suas irmãs e companheiras mulheres e ajudá-las a tomar consciência da unção que também receberam no seu Batismo e que lhes dá o direito de participar na poesia do anúncio do Evangelho e no serviço alegre e disponível, carinhoso e amoroso, de todo o povo de Deus. Se Deus criou a humanidade homem e mulher, excluir a mulher de tantos setores da vidas da Igreja é cruel com a própria humanidade, além de profundamente deshumanizador. A fraternidade eclesial, pela qual o presbítero é grandemente responsável, não se fará sem a presença desta que, com seu cuidado e jeito próprio de ser, certamente abrirá para muitos as portas do Evangelho, e poderá chegar ali onde outros que não têm sua intuição, seu coração, sua experiência vital, não conseguem chegar.
Termino afirmando que é somente vivendo essa fraternidade que integra as diferenças e possibilita o milagre do amor que inclui, perdoa, restaura e resgata, poderão os presbíteros exercer no meio do mundo e da Igreja o ministério que lhes foi confiado – disponibilizando a unção que receberam, pronunciando a poesia divina que lhes foi confiada e servindo a missão de Cristo juntamente com seus companheiros outros no gênero, na vocação e no ministério - e caminhar rumo ao ideal de santidade que lhes é proposto pela Igreja que os ordenou para o serviço do povo de Deus.
Deixemos que a literatura mais uma vez nos ajude com suas inspiradas palavras. Começamos com um poeta brasileiro, Jorge de Lima. Terminamos com um dos mais belos textos da literatura universal, o clássico “Diário de um pároco de aldeia”, do grande escritor católico francês Georges Bernanos. Seu personagem, um jovem e santo pároco de aldeia, “ vigário de roça “, como diríamos aqui, nos diz neste pequeno trecho de um grande romance, palavras sérias, algo duras, porém grávidas de sentido:
Pagamos caro, muito caro, a dignidade sobre-humana de nossa vocação. O ridículo está sempre tão próximo do sublime! E o mundo, comumente tão indulgente com os ridículos, odeia o nosso, por instinto...O distanciamento entre tantos pobres e o padre, sua profunda antipatia, talvez não se explique somente, como querem nos fazer acreditar, pela revolta mais ou menos consciente dos apetites contra a lei e aqueles que a encarnam... Por que negá-lo? Para ter um sentimento de repulsa diante da feiúra não é preciso se ter uma idéia muito clara do belo. O padre medíocre é feio. Não estou falando do mau padre. Ou antes, o mau padre é o padre medíocre. O outro é um monstro. A monstruosidade escapa a qualquer medida comum. Quem pode saber os desígnios de Deus para um monstro? Para que serve? Qual é o significado sobrenatural de uma desgraça tão espantosa?...
O padre medíocre, infelizmente, o é quase que para sempre. Talvez o vício seja menos perigoso para nós do que certa insipidez. Existem amolecimentos de cérebro. Mas o amolecimento do coração é pior.
Um coração sempre ardente do Amor que nos chamou a cada um de nós a uma vocação que começa e termina em Jesus Cristo, Senhor da nossa vida, é o meu desejo profundo ao final de minha comunicação a vocês. AMÉM.

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