FALTAM PROFETAS E PROFETISAS!

Os tempos atuais se caracterizam pela ausência de grupos liminares. Estes grupos são formados por pessoas que, como verdadeiras sentinelas, colocam-se nas áreas de fronteira e alertam as sociedades humanas para o perigo de se desviarem do essencial(...)Nos ambientes religiosos, particularmente no judaísmo e no cristianismo, estes grupos liminares são formados pelos profetas e profetisas. Posicionando-se no limiar, ou seja, no ponto de equilíbrio entre a euforia barata e a realidade concreta, os profetas e as profetisas corajosamente apontam os graves erros e desvios do momento que as lideranças religiosas e políticas se recusam a enxergar.

Ao denunciar as mazelas existentes no judaísmo, antes, e na Igreja agora, os profetas e as profetizas têm a convicção de que a profecia não pode ser direcionada apenas para os de fora, os que não fazem parte do grupo religioso: governantes, políticos, não crentes etc. Isso seria muito fácil. No passado a profecia verdadeira tocava também nos calos das autoridades religiosas e desafiava os ilustres frequentadores de templos. Hoje ela desafia a hierarquia, os misseiros e rezadores que se acham os tais só porque praticam algumas devoções.

O autêntico profeta deve, como Jeremias, postar-se em frente aos templos, ou seja, diante dos sistemas religiosos e denunciá-los sem medo (Jr 7,1-29). É claro que o profeta ou profetiza sabe que isso é muito perigoso, pois quando a denúncia profética se volta contra a "dança de Baal” (1Rs 18,20-40), ou seja, contra a falsa religiosidade, os profetas são banidos, perseguidos e ameaçados de morte (1Rs 19,1-10). Isso faz com que em tempos de crise dos sistemas religiosos os profetas se reduzam ou se transformem em farsantes que "não passam de puro vento” (Jr 5,13). E a redução se dá porque os profetas e profetisas são eliminados ou ameaçados pelo poder religioso, o qual, nesta hora, costuma juntar-se ao poder civil para cumprir fielmente esta tarefa de banir as vozes que incomodam. Em razão disso sobram pouquíssimos ou quase nenhum profeta corajoso, os quais, para escapar da perseguição e da morte, preferem fugir e se esconder (1Rs 19,10).

A perseguição aos profetas e profetisas acontece porque, segundo a Bíblia, a profecia não é feita de elogios e de anúncio de coisas bonitas. Isso seria falsificar a missão profética. Toda profecia é sempre denúncia e anúncio de desgraças e somente quando há real conversão é que se pode falar das coisas boas que virão como consequência. No repertório bíblico profético é muito comum termos somente "profetas de desgraças”, como foi o caso de Miquéias (1Rs 22,13-28). O profeta ou profetisa não é um "decorador eclesiástico”, mas um demolidor de sistemas religiosos. Não há como criar o novo sem destruir o velho (Jr 1,10). O próprio Jesus se comportou assim e, por isso, morreu crucificado por obra e graça dos chefes religiosos do seu povo.

Sabemos que todos os cristãos formam o Povo de Deus e são, pelo batismo, chamados a profetizar. Isso é dito claramente nos documentos da Igreja e tem uma boa fundamentação bíblica (Nm 11,29). Hoje, porém, notamos a ausência de profetas e de profetisas. Há muita pressão e controle dentro das Igrejas e os batizados e as batizadas vivem com medo e temor. Até mesmo aqueles e aquelas que na Igreja deveriam ser pontas de lança e referenciais da profecia (as pessoas de vida consagrada) silenciam e não ousam profetizar. Pouco tempo atrás alguém falava da "aposentadoria precoce da Vida Religiosa”. Nossa situação é muito semelhante aos tempos do profeta Daniel, quando não havia mais "chefe, profeta ou dirigente” (Dn 3,38).

A crise eclesial é visível. Estamos vivendo em tempos de uma Igreja acomodada, que propositadamente se distância cada vez mais do Vaticano II e traz de volta mediocridades e coisas sem sentido. A hierarquia pune teólogos sérios e missionários que se esforçam para realizar uma evangelização inculturada e traduzir a mensagem cristã numa linguagem que possa ser compreendida pela mulher e pelo homem deste início de século. Negocia o inegociável com os ultraconservadores, os quais continuam intransigentes em seus pontos de vista e impondo condições para "voltar” ao seio da Igreja. As lideranças religiosas são incapazes de ler os sinais dos tempos e escutar os apelos do mundo de hoje. Numa Igreja assim é indispensável que vozes proféticas se levantem e denunciem corajosamente todos esses desmandos. Vivemos em tempos de banalidades eclesiásticas, de abandono do essencial, de exaltação de periféricos. A pós-modernidade, em seu sentido pleno e também literal, tomou conta da Igreja. Vale a subjetividade fechada, os gostos de cada um, os enfeites, as vestes brilhantes, o discurso lacunar, ou seja, as palavras vazias.

Num contexto como esse não cabe aos profetas e profetisas ficar falando de "coisas bonitas”. Não é da missão profética incensar e bajular o poder religioso e, de modo farsante, dizer que está tudo bem, quando sabemos que isso não é verdade. Não cabe ao profeta aumentar a ilusão, mas apontar de forma clara e corajosa a farsa existente, tantas vezes coberta com a capa da religiosidade aparente (Jr 7,4). Cabe, por exemplo, ao profeta e à profetisa apontar a esquizofrenia de certa parte da Igreja que se define como "perita em humanidade”, mas, ao mesmo tempo, não respeita minimamente os direitos humanos mais elementares. Esta parte da Igreja que se apresenta com seus moralismos, com sua moral sexual rigorista e depois tenta justificar os escândalos de pedofilia eclesiástica com a desculpa de que 80% desses crimes são cometidos em ambientes familiares e por pessoas de vida sexual ativa. Enquanto o Evangelho pede que não se escandalize um só pequenino (Lc 17,2), esta parte da Igreja considera normais os milhares de casos de pedofilia clerical. Acredita que tudo não passa de "intriga da oposição” e de exagero e barulho da mídia.

Nesta hora o profeta e a profetisa não são chamados a engrossar as fileiras dos incensadores e farsantes, mas se sentem impelidos pelo Espírito de Deus a mostrar e a dizer que outra Igreja é possível, que o atual modelo eclesial está superado, arcaico e ultrapassado e que certas atitudes das lideranças eclesiásticas não estão em sintonia com o Evangelho.

Como seria bom ver na Igreja uma multidão de profetas e de profetisas corajosos. Há um bom grupo deles e delas espalhado pelo mundo, mas o coro dessas vozes precisa aumentar. É preferível na Igreja um coro de profetas e profetisas contestadores e denunciantes do que, como dizia Isaías, uma longa fila de profetas tontos, cambaleantes e confusos. Estes profetas tontos, alguns deles também ministros, parecem viver sob o efeito de cachaça. Andam confusos e divagando em suas falas e sentenças e, por isso, não conseguem comunicar nenhuma mensagem séria (Is 28,7-13).

Por José Lisboa Moreira de Oliveira - Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília.

Fonte: ADITAL

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