DEUS E ECOLOGIA: DIGNIDADE DE VIDA A SER CULTIVADA

A onda ecológica veste-se facilmente de religiosidade. Toca-lhe fortemente a aura sagrada. Fala-se de mistério, de espírito, de totalidade, enfim, de termos que ressudam religião. Que há realmente de verdade nesse discurso? Encontra-se realmente a pessoa de Deus no cosmos ou projetam-se sobre ele aspirações sacralizantes tipicamente humanas. Não valeria aqui a acre crítica ateia de L. Feuerbach de que Deus não passa de projeção do ser humano? A "morte de Deus" significaria então o encontro do ser humano com a sua verdade. Deus falseia-lhe a percepção e mascara-lhe a autoconsciência(...)

Vamos devagar. Existe uma sacralidade cósmica que beira o panteísmo. Tudo é Deus. Ele não passa de uma realidade humana na totalidade do criado. O conjunto do cosmos é divino, mas não Deus. Existe o adjetivo e não o substantivo. O adjetivo reflete o sentimento que temos. O substantivo aponta para a realidade existente. Não afirmamos nada de Deus, mas sentimo-nos maravilhados em face do cosmos, atribuindo-lhe respeito e admiração que raia o divino.

A visão cristã caminha em outra direção. Na origem está o ato criador. Ressoam-nos as primeiras palavras da Escritura: "No princípio, Deus criou o céu e a terra" (Gn 1,1). Esse princípio tem dois sentidos bem diferentes. A criação inicia o tempo. Nesse princípio, que antecede o tempo, está Deus a criá-lo juntamente com o mundo. Princípio significa ainda algo mais profundo. Denota origem, fonte primeira, sustentáculo fundamental. Não termina nunca. Não conota continuidade. Permanece continuamente princípio de existência.

Assim Deus faz saltar para dentro do tempo a energia fundamental que se cria simultaneamente com ele. Essa explode no big-bang das galáxias até hoje em expansão. Deus não abandona, porém, essa criação. Mantém-na sob a sua força criativa de modo que se a subtraísse, um instante sequer, tudo voltaria ao nada abissal.

A fé bíblica continua e a teologia reflete. Esse mundo criado e sustentado por Deus está entregue à liberdade, à autonomia, à razão humana. Também ela se sustenta em Deus que não lhe deixa de ser o primeiro e último princípio a iluminá-la de modo misterioso, embora real. E nessa conjugação de razão e fé, o ser humano caminha defrontando-se com o cosmos. A ecologia significa, então, esforço de pôr a razão a serviço da harmonia do ser humano com tudo o que o cerca e nisso realiza o projeto primeiro de Deus.

A razão se rege pela ética responsável pela sustentabilidade do criado. A fé acolhe a autocomunicação de Deus que se revela como a última fonte da beleza de toda a criação a impelir-nos a respeitá-la, amá-la e torná-la companheira de caminhada até a plenitude da vida eterna. Esse Deus pessoal, dialogante e interpelante, paradoxalmente dessacraliza e sacraliza o cosmos. Dessacraliza-o, ao colocá-lo sob nossa responsabilidade ética. Sacraliza-o, ao arrancá-lo da simples condição de mero objeto de nossa exploração, para dar-lhe dignidade de vida a ser cultivada.

Por J. B. Libânio - Teólogo e escritor - ADITAL

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