MERGULHANDO NA SARÇA ARDENTE

Seria bom se nos deparássemos, à entrada de cada Igreja, com Moisés retirando as sandálias: atitude fundamental de quem entra em um lugar sagrado. Isto não é um preceito moralizante, peso ou obrigação, mas uma sugestão. Cada um descobrirá o que é a sua sandália e por que deve retirá-la.

A igreja é um lugar sagrado, e deve ser diferente de todo o resto. Nós, católicos, depois de uma interpretação superficial do Concílio Vaticano II, fizemos da liturgia e de seu espaço um exercício mental, racional, intimista ou emocional, mas perdemos o caráter objetivo que ele tem. Por isso a sandália aqui, mais do que qualquer outra coisa, significa que estou diante de uma Realidade objetiva, concreta, que não entendo nem entenderei, mas mergulharei nela, e ela objetivará, tocará e transformará minha vida! (...)


A sandália protege meus pés de tocar a terra. Protege das feridas que pode proporcionar, mas protege também da imensa comunicação que pode ocorrer quando estou desarmado. É o risco de tocar o único terreno real que importa. É o risco de quem entra no deserto! Nosso caro Moisés é uma mensagem, sem palavras, que prepara nosso coração para escutar o silêncio Eterno da Trindade. O Mistério é inexplicável, e se assim não fosse, não seria mistério... Ele é "contemplável", podemos dele beber, nele mergulhar, porém nunca contê-lo ou retê-lo.

"Os israelitas, que gemiam ainda sob o peso da servidão, clamaram, e, do fundo de sua escravidão, subiu o seu clamor até Deus. Deus ouviu os seus gemidos e lembrou-se de sua aliança com Abraão, Isaac e Jacó. Ele olhou para os israelitas e se ocupou deles (...) Moisés apascentava o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madian. Um dia em que ele conduzira o rebanho para além do deserto, chegou até a montanha de Deus, Horeb. O anjo do Senhor apareceu-lhe em uma chama de fogo (que saía) do meio duma sarça, Moisés olhava: a sarça ardia, mas não se consumia. 'Vou voltar, disse ele consigo, para contemplar esse extraordinário espetáculo, e saber por que a sarça não se consome'. Vendo o Senhor que ele se voltou para ver, chamou-o do meio da sarça: 'Moisés, Moisés!' - 'Eis-me aqui!' Respondeu ele. E Deus: 'Tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que te encontras é uma Terra Santa. Eu Sou, ajuntou Ele, o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, de Isaac e o Deus de Jacó'. Moisés escondeu o rosto, e não ousava olhar para Deus (...) O Senhor disse: 'Vi a aflição do meu povo que está no Egito, e ouvi os clamores por causa dos seus opressores, sim: Eu conheço os seus sofrimentos(...)" (Ex 2,23-3,7).

Dentro da igreja estamos diante de uma "Terra Santa", que é este espaço sagrado, e que é também o coração de cada pessoa que ali entra. Moisés viveu uma experiência interessante: é um fugitivo, um assassino; abandonou seus irmãos, que também o rejeitaram, e veio salvar sua pele nas terras pagãs de Madian. Ali se casa, trabalha, e tenta esquecer o que ficou para trás... Mas não consegue! Carrega dentro de si uma chaga, uma ferida que não cicatrizou, e que o incomoda continuamente. É como se carregasse dentro de si um fogo que o queimasse, mas que não se consumisse! Uma sarça, da qual aquela que via não era senão um símbolo. E este era seu ponto fraco, secreto, escondido e vergonhoso, por tantos anos... Quanto desejou que se apagasse, ou que o devorasse completamente de uma vez... Mas nem uma coisa nem outra, ela queimava e não se consumia… E tudo isso porque Deus estava nela, era Ele mesmo o fogo eterno que se fazia presente!

Moisés vive uma grande confusão interna, pois de todos os lugares simbólicos de sua existência, este era o mais pobre e miserável, era o último lugar que poderia hospedar o "Três vezes Santo". Ele havia escolhido estar ali todo esse tempo... É algo que nos custa compreender! Sobretudo porque, nessas alturas, cada um pensa em sua própria sarça ardente, e começa a questionar-se seriamente se ela não seria justamente o portal de seu santuário interior, sempre buscado e nunca encontrado, porque buscado somente nas partes nobres da casa...

O Senhor não dá muitas explicações sobre este seu estranho gosto de nos encontrar somente em nossa verdade mais profunda, ainda que dolorosa. Se Ele marcou conosco um encontro no pó da terra não foi para nos humilhar, mas porque somente ali nos encontraria desarmados de nossas virtudes... Ele simplesmente está ali, e está bem! Esta sua presença santa muda tudo até então... E isto Ele mesmo nos adverte: "tira as sandálias... A terra em que pisas é santa!" A confusão toma conta de nosso ser... Como pode minha ferida ser santa? A Presença dentro dela responde silenciosa, estando ali, simplesmente, sem maiores explicações.

Se quisermos contemplar o mesmo mistério à luz do Novo Testamento, podemos olhá-lo com os olhos de São Tomé, que ao tocar as chagas de Cristo, toca suas próprias, que se tornam, nesse momento, chagas gloriosas, conectadas para sempre com o mistério pascal do Senhor.
O homem é curado e continua com sua ferida... É um paradoxo incompreensível! Mas, agora, ele não está sozinho - "Eu Sou" está ali - e começa a perder o medo de se aproximar dela, o que lhe permitirá descobrir as riquezas e belezas, sobretudo sua sacralidade e seu espaço de encontro. O próprio Senhor o instrui, tirando-o de si mesmo e enviando-o de volta ao Egito, parte de suas chagas... Porque lá existem muitos que precisam de libertação. Como o amor é difusivo de si mesmo, não pode ficar contido, é chamado a se comunicar, e esta mesma comunicação também faz parte da terapêutica divina, que leva o homem a assumir suas raízes de forma positiva e luminosa, a serviço dos demais. Desta maneira, o campo do amor, enraizado na verdade, faz o homem crescer por inteiro.

A Igreja, quando celebra a liturgia em assembléia, ou em sua arte e arquitetura (que deveriam continuar celebrando a liturgia através da matéria e das formas), deveria ser este lugar de mistério, onde o homem se encontra consigo mesmo em Deus, através dos símbolos, os únicos capazes de dar imagem a realidades profundas e sem nome; e deste encontro, o seu compromisso na história.

FONTE: COMUNIDADE SHALOM

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