O QUE É RELIGIÃO?
Rubem Alves
Houve um tempo em que os descrentes, sem amor a Deus e sem religião, eram raros. Todos eram educados para ver e ouvir as coisas do mundo religioso e a conversa cotidiana confirmava que este é um universo encantado que esconde e revela um poder espiritual. A exigência de um sentido para a vida trazia às religiões uma certa identidade e lhes dava vida.
Apesar do encanto ter sido quebrado, a religião não desapareceu. Mudou de foco e de moradia. Enquanto no mundo sagrado, a experiência religiosa era parte integrante de cada um, no mundo das ciências fora colocada para fora. No entanto, ela resistiu, surge forte quando se esgotam os recursos diante de um coração arrasado pela dor e insegurança.
A religião surge na vida humana como tentativa de transubstanciar a natureza e dar espaço aos seus desejos em busca dos horizontes. Enquanto o animal é o seu corpo, sempre produzindo a mesma coisa, os homens se recusaram a ser aquilo que o passado lhes propunha. Na sua inquietação e busca, produziram cultura e educaram. Criaram mundos imaginários e passaram de geração em geração através da cultura que se estruturou a partir de seu desejo.
Sendo o desejo sintoma de privação, a cultura cria exatamente o objeto desejado na busca de um mundo que possa ser amado. No entanto, a cultura não é garantia de que o desejo foi alcançado, mas é externalização do desejo em meio à sua ausência. Enquanto o desejo não se realiza, resta cantá-lo, dizê-lo, celebrá-lo.
Nascem então os símbolos, testemunha das coisas ainda ausentes, saudade de coisas que não nasceram, no ponto em que a cultura fracassou, como horizontes direcionadores. Nenhum fato, coisa, ou gesto, entretanto, é encontrado já com as marcas do sagrado. Eles se tornam religiosos quando os homens os batizam como tais. A religião nasce quando os homens dão nomes às coisas, atribuindo-lhes valores e dependurando neles o seu destino. Ela não está preocupada com os fatos, mas com os objetos que a imaginação pode construir em busca do esperado. As entidades religiosas se identificam com as imaginárias que tornam o mundo humano uma realidade.
A natureza não depende da vontade humana para existir. Mas a cultura é diferente. Tudo que surgiu com a atividade humana (adornos, linguagem, etc) quando o homem desaparecer desaparecerá. As coisas culturais foram inventadas, no entanto, aparecem aos nossos olhos como se fossem naturais pelo processo de reificação, ou, como prefere Rubem Alves, coisificação.
Isso se aplica de maneira peculiar aos símbolos. De tanto serem repetidos e compartilhados com sucesso nós os reificamos, passamos a tratá-los como se fossem coisas. Os símbolos que se mantêm vitoriosos recebem o nome de verdade, enquanto os derrotados são ridicularizados como superstições ou perseguidos como heresias.
O universo religioso encantado não poderia ser manipulado ou controlado pela burguesia que encontrou na previsibilidade da matemática, instrumento ideal para a construção de um mundo vazio de mistérios e dominado pela razão. O mundo religioso e seus símbolos foram lançados nas chamas.
Alinhada aos interesses da burguesia, a ciência se apresenta vitoriosa. Determina que o conhecimento só pode ser alcançado através do método científico. E o discurso religioso? Só pode ser classificado como engodo consciente. Estabeleceu-se um quadro simbólico no qual não havia lugar para a religião. Deusficou confinado aos céus, dividindo-se áreas de influência: aos comerciantes e políticos foram entregues a terra, os mares, as fábricas e até os corpos das pessoas. A religião foi aquinhoada com a administração do mundo invisível, o cuidado da salvação, a cura das almas aflitas.
No entanto, os julgamentos de verdade e de falsidade não podem ser aplicados à religião, pois no mundo dos homens podem ser encontrados dois tipos de coisas: as coisas/símbolo, aquelas que significam outras e as coisas que são elas mesmas, não significam outras. Enquanto os símbolos carecem que comprovação as coisas são elas mesmas e não precisam passar pelo crivo de falso ou verdadeiro. A religião se apresenta como coisa e sua realidade não pode ser negada.
As religiões se estabelecem e subsistem a partir da divisão bipartida do universo entre o sagrado e o profano. Sagrado e profano não são propriedades das coisas. Eles se estabelecem pelas atitudes dos homens perante coisas, espaços, tempos, pessoas, ações. Enquanto o mundo profano se resume ao círculo do utilitário, o sagrado avança para o ideal. Se o homem é senhor do mundo utilitário, no sagrado ele é servo. O sagrado é apresentado como centro do mundo, a origem da ordem, a fonte das normas, a garantia da harmonia que se manifesta na e pela sociedade.
A religião como fato social não está completamente à mercê da análise sociológica, pois os sentimentos religiosos se encontram numa esfera de experiência indiferente à análise sociológica, por ser íntima, subjetiva e existencial.
A religião é o clamor daqueles que sofrem e sonham para acalentar a alma, definindo o mundo sagrado como um grito que ecoa a essência humana.
A religião tem um caráter ambivalente: ela pode prestar a objetivos opostos, tudo dependendo daqueles que manipulam os símbolos sagrados. Ela pode ser usada para iluminar ou para cegar. Mas, na figura dos mártires tem sido expressão das dores e das esperanças dos que não têm poder, apresenta um Deus que é o protesto e o poder dos oprimidos dando o toque e o sentido para a vida, declarando que vale a pena viver.
Rubem Alves
Houve um tempo em que os descrentes, sem amor a Deus e sem religião, eram raros. Todos eram educados para ver e ouvir as coisas do mundo religioso e a conversa cotidiana confirmava que este é um universo encantado que esconde e revela um poder espiritual. A exigência de um sentido para a vida trazia às religiões uma certa identidade e lhes dava vida.
Apesar do encanto ter sido quebrado, a religião não desapareceu. Mudou de foco e de moradia. Enquanto no mundo sagrado, a experiência religiosa era parte integrante de cada um, no mundo das ciências fora colocada para fora. No entanto, ela resistiu, surge forte quando se esgotam os recursos diante de um coração arrasado pela dor e insegurança.
A religião surge na vida humana como tentativa de transubstanciar a natureza e dar espaço aos seus desejos em busca dos horizontes. Enquanto o animal é o seu corpo, sempre produzindo a mesma coisa, os homens se recusaram a ser aquilo que o passado lhes propunha. Na sua inquietação e busca, produziram cultura e educaram. Criaram mundos imaginários e passaram de geração em geração através da cultura que se estruturou a partir de seu desejo.
Sendo o desejo sintoma de privação, a cultura cria exatamente o objeto desejado na busca de um mundo que possa ser amado. No entanto, a cultura não é garantia de que o desejo foi alcançado, mas é externalização do desejo em meio à sua ausência. Enquanto o desejo não se realiza, resta cantá-lo, dizê-lo, celebrá-lo.
Nascem então os símbolos, testemunha das coisas ainda ausentes, saudade de coisas que não nasceram, no ponto em que a cultura fracassou, como horizontes direcionadores. Nenhum fato, coisa, ou gesto, entretanto, é encontrado já com as marcas do sagrado. Eles se tornam religiosos quando os homens os batizam como tais. A religião nasce quando os homens dão nomes às coisas, atribuindo-lhes valores e dependurando neles o seu destino. Ela não está preocupada com os fatos, mas com os objetos que a imaginação pode construir em busca do esperado. As entidades religiosas se identificam com as imaginárias que tornam o mundo humano uma realidade.
A natureza não depende da vontade humana para existir. Mas a cultura é diferente. Tudo que surgiu com a atividade humana (adornos, linguagem, etc) quando o homem desaparecer desaparecerá. As coisas culturais foram inventadas, no entanto, aparecem aos nossos olhos como se fossem naturais pelo processo de reificação, ou, como prefere Rubem Alves, coisificação.
Isso se aplica de maneira peculiar aos símbolos. De tanto serem repetidos e compartilhados com sucesso nós os reificamos, passamos a tratá-los como se fossem coisas. Os símbolos que se mantêm vitoriosos recebem o nome de verdade, enquanto os derrotados são ridicularizados como superstições ou perseguidos como heresias.
O universo religioso encantado não poderia ser manipulado ou controlado pela burguesia que encontrou na previsibilidade da matemática, instrumento ideal para a construção de um mundo vazio de mistérios e dominado pela razão. O mundo religioso e seus símbolos foram lançados nas chamas.
Alinhada aos interesses da burguesia, a ciência se apresenta vitoriosa. Determina que o conhecimento só pode ser alcançado através do método científico. E o discurso religioso? Só pode ser classificado como engodo consciente. Estabeleceu-se um quadro simbólico no qual não havia lugar para a religião. Deusficou confinado aos céus, dividindo-se áreas de influência: aos comerciantes e políticos foram entregues a terra, os mares, as fábricas e até os corpos das pessoas. A religião foi aquinhoada com a administração do mundo invisível, o cuidado da salvação, a cura das almas aflitas.
No entanto, os julgamentos de verdade e de falsidade não podem ser aplicados à religião, pois no mundo dos homens podem ser encontrados dois tipos de coisas: as coisas/símbolo, aquelas que significam outras e as coisas que são elas mesmas, não significam outras. Enquanto os símbolos carecem que comprovação as coisas são elas mesmas e não precisam passar pelo crivo de falso ou verdadeiro. A religião se apresenta como coisa e sua realidade não pode ser negada.
As religiões se estabelecem e subsistem a partir da divisão bipartida do universo entre o sagrado e o profano. Sagrado e profano não são propriedades das coisas. Eles se estabelecem pelas atitudes dos homens perante coisas, espaços, tempos, pessoas, ações. Enquanto o mundo profano se resume ao círculo do utilitário, o sagrado avança para o ideal. Se o homem é senhor do mundo utilitário, no sagrado ele é servo. O sagrado é apresentado como centro do mundo, a origem da ordem, a fonte das normas, a garantia da harmonia que se manifesta na e pela sociedade.
A religião como fato social não está completamente à mercê da análise sociológica, pois os sentimentos religiosos se encontram numa esfera de experiência indiferente à análise sociológica, por ser íntima, subjetiva e existencial.
A religião é o clamor daqueles que sofrem e sonham para acalentar a alma, definindo o mundo sagrado como um grito que ecoa a essência humana.
A religião tem um caráter ambivalente: ela pode prestar a objetivos opostos, tudo dependendo daqueles que manipulam os símbolos sagrados. Ela pode ser usada para iluminar ou para cegar. Mas, na figura dos mártires tem sido expressão das dores e das esperanças dos que não têm poder, apresenta um Deus que é o protesto e o poder dos oprimidos dando o toque e o sentido para a vida, declarando que vale a pena viver.
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