Às vezes, autonomia, pode ser
confundida com poder ilimitado, com liberalidade, com não precisar de ninguém.
S. Paulo já dizia: "Tudo é permitido, mas nem tudo convém, nem tudo edifica".
Mas, a verdadeira autonomia é aquela em que o ser humano vivencia um processo
da construção de si mesmo e de sua vida, sem que forças manipuladoras
determinem por ele. Esse processo lento e sofrido não existe para nos livrar
dos conflitos, dos desiquilíbrios, das tensões, das crises. Não tem a pretensão
de nos levar a um estado confortável, mas nos aponta para ações, decisões,
compromissos ainda que isso possa desestabilizar...
Leonardo Boff ao dar um
sentido teológico à autonomia, diz: “Deus poderia ter criado os homens na
comunhão com Ele e assumi-los todos. Mas quis a participação livre do homem ou
de sua negação”. Portanto, nesse processo histórico, longo e doloroso, o homem
foi convidado a participar do próprio ato criador de Deus. Quis que, de alguma
forma, cada qual merecesse e conquistasse ser Deus-humanado ou homem-divinizado.” Essa é a chave da
humanização. Deus quis, por amor, um ser livre, autônomo.
A "Gaudium et Spes", numa
análise para o Vaticano II diz assim: “Este homem, que poderá ser engolido pelos desequilíbrios
do mundo moderno, se não tiver consciência de si mesmo e de seu destino, não
chegará à sua própria autonomia. “ O que
ela nos aponta? Que a autonomia liga o
ser humano com o seu destino, portanto com seu Criador que para tanto exige a
consciência de si próprio: o ser humano precisa saber quem ele é, a que veio e
para onde vai.
Conhecer-se sim, mas não ficar
para dentro, isolado. E para aqueles que
fazem da religião uma terapia o papa
Francisco alerta: “A religião não é um
problema pessoal que reduz o encontro com Jesus Cristo a uma dinâmica de
auto-conhecimento...O discípulo de Cristo não é uma pessoa isolada em uma
espiritualidade intimista, mas uma pessoa em comunidade para se dar aos
outros.”
E a autonomia pressupõe mesmo
o outro. Ninguém nasce pronto e ninguém vive sozinho, queiramos ou não
queiramos, interagimos, com tudo e com
todos, como que numa grande teia e por
certo afetando e sendo afetados por tudo e por todos também. Então, o “eu” só é
autônomo na comunhão com os demais “eus”
E aí eu me reporto a Paulo
Freire quando diz que o processo
para o ser humano ser ele mesmo, é um “vir a ser” para se constituir “ser para
si”, como consciência de si próprio ao mesmo tempo, que é um “ser com os
outros” e eu acrescentaria” para os
outros” que vai se realizando nas
relações que tem com as demais pessoas, com o mundo com a história e com o seu
Criador. E é nesse movimento que se percebe como um ser inacabado. Porque se
sabe finito o retorno à fonte o liberta. Por isso essa relação nunca será de
dominação, mas de libertação. (Paulo Freire)
Nós, enquanto mundo, enquanto
sociedade, enquanto Igreja, também não
somos sempre os mesmos, estamos sendo, porque juntos e a cada dia, construímos
e reconstruímos a nossa libertação, a história social,a a história da nossa
salvação. Sim, porque a autonomia também
se dá na consciência coletiva de um povo, de um grupo, de uma instituição.
Puebla nos lembra que “A
libertação cristã é uma libertação que vai se realizando na história, a
libertação de nossos povos e a nossa própria pessoal, e abrange as diversas
dimensões da existência: o social, o político, o econômico, o cultural e o
conjunto de suas relações. Em tudo isso há de circular a riqueza transformadora
do Evangelho” (438). O místico Thomaz
Munzer, disse uma vez: ”Vocês encontraram Deus na Bíblia. Precisamos encontrar
Deus na história, no povo que grita por vida e por justiça.
Então, a grande alavanca para autonomia é a
ação transformadora que não se dá no campo das ideias apenas, mas na ação que
transforma a realidade como compromisso “histórico de fazer e refazer o mundo,
de ser criativo, criador” como o Criador
pensou que fôssemos ao nos criar por amor.
Essa é a construção do ser
sujeito e não objeto. Porque objeto, não fala, não decide, só ocupa lugar. E é
nesse sentido que falamos de corresponsabilidade na missão da Igreja. Quem só
ocupa lugar, quem só sabe ser dirigido, não constrói nada, porque não sabe
decidir, opinar; pode ser um bom tarefeiro, mas têm atitude de quem não sabe. Numa igreja, onde há os que
sabem, e os que não sabem, os que podem
e os que não podem, os que dominam e os dominados, fica difícil o diálogo,
impedida a autonomia.
O processo de construção da
autonomia só poderá se dar no interno da Igreja se cada um de seus membros
tiverem a consciência de que nela não pode haver objetos, mas sujeitos. Por que
se não for assim, a relação que se der entre um ser sujeito e outro que ainda
não se processou como sujeito, vai haver relação de dominação. Então, não
haverá comunhão. Mas quando o sujeito propicia que o outro que não é, também
consiga construir sua autonomia, então haverá um processo de libertação das
duas partes.
Para sair da heteronomia será
preciso “desmontar o que causa o imobilismo, a passividade, a mesmice. Será
preciso um trabalho em que haja
participação ( que não é fazer tudo sozinho) dos objetivos e fins da
instituição através de discussões, decisões, não substituindo papeis, mas no
sentido da corresponsabilidade. Por isso, a realidade de poder autoritário é
“desumanizante” porque atinge quem domina e quem se aliena, “nega aos dois a
liberdade de ser mais, criativo e criador.” (Freire)
É preciso reconhecer que do
Vaticano II para cá, muitas formas de atuação do laicato foram lançadas e que
nesses 50 anos pós Concilio o laicato sempre esteve no centro das ações mais
ousadas da Igreja no mundo e nas práticas ministeriais mais criativas dentro da
Igreja. Inclusive fomos chamados a sermos protagonistas da Nova Evangelização.
Porém, sem autonomia não se pode ser protagonista de nada.
Mas para que a autonomia seja
uma realidade e não um projeto exige-se uma mudança de mentalidade que não é só
interior, é fruto das experiências conjuntas da comunidade, da relação entre
sujeitos, não pode ser uma coisa que venha de cima para baixo, pensada por
alguém, para outro realizar. Não é só chamamento para o laicato, mas para toda
a Igreja, numa ousada renovação de estruturas, para não se repetir um passado
onde o laicato ou era tutelado ou agia
por procuração.
Então, o desafio é retomar o
espírito renovador do Concílio Vaticano II , pois ele representou e ainda
representa um momento privilegiado do Espírito Santo, que nos permite sonhar
novamente com uma Igreja, comunidade de irmãos autônomos, sem divisões, sem privilégios, toda
ministerial, baseada no batismo que consagra todos os irmãos na
responsabilidade pela Igreja e pelo mundo. É dessa autonomia que eu falo, necessária
para se viver a comunhão.
Por: Márcia Signorelli - Equipe de Formação do CNLB
Fonte: SITE - CNLB
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